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Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

O eterno problema das urgências

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Eu gosto de fazer urgência. Melhor dizendo, eu adoro fazer urgência. Talvez seja pelo contacto frequente que me permite ter com o doente crítico. E entenda-se que quando utilizo o termo “doente crítico” não me refiro ao doente que refila por tudo, desde a quantidade de sal na sopa até à rigidez do colchão da maca onde está deitado. Doente crítico é o doente que está, efectivamente e por assim dizer, doente. É o pobre infeliz que padece de doenças potencialmente ameaçadoras de vida, grupo nas quais a bela da unhaca encravada ou a dor de costas de Domingo à noite não se incluem. Este tipo de doentes, os críticos, sempre me agradou desde os meus mais tenros anos de médico indiferenciado. Talvez por isso tenha escolhido uma especialidade que me permite manter o contacto com os mesmos e a frequência assídua do serviço de urgência, em vez de me fechar e cristalizar no consultório a ver fibromiálgicas. E sim, esta facada foi direccionada aos reumatologistas que se encontram neste preciso momento a ler este texto e para os quais endereço um daqueles beijinhos molhados que nos deixa com vontade de aplicar um kleenex o quanto antes na nossa proeminência malar.

 

Outra coisa que me fascina em fazer urgência é a capacidade que temos de ajudar o doente no momento. Fazer a diferença no imediato. Sempre me frustrou a ideia de ter de esperar semanas a meses para que determinada atitude terapêutica exerça o seu efeito. É, como se diz em jargão médico, uma bela de uma seca. Talvez por isso me tenha querido afastar tanto das fibromiálgicas que enchem os gabinetes de consulta dos hospitais deste nosso belo SNS a fora. Entenda-se que de forma alguma pretendo diminuir a importância e o impacto na saúde da população de especialidades como a Medicina Geral e Familiar. O backbone de um bom sistema de saúde começa nos cuidados de saúde primários e em relação a isso não tenho a mais pequena dúvida. Apenas digo que me aborrece. E ainda bem que não somos todos iguais. Senão, para que serviria o ananás?

 

Dito isto, é com alguma tristeza que constato que os serviços de urgência são, actualmente, os parentes pobres do SNS. O pináculo da degradação a que esta nossa bela experiência chamada Serviço Nacional de Saúde tem sido sujeita. De tal forma que até me vejo eu próprio, Dr. Pérolas da Urgência, a ansear pelo momento em que vejo os meus colegas do turno seguinte irromper pelo balcão de atendimento a dentro de forma a me render e, assim, acabar com o meu sofrimento.

 

Entendam, por favor, que não são os doentes que me causam mossa. Sim, os nossos doentinhos estão muito estragadinhos. Sim, em todas as urgências assisto a cenas de degradação humana que fazem os protagonistas da “Lista de Schindler” corar de vergonha. Sim, há acompanhantes e doentes muito chatos e inapropriados. Mas isso são, como costumo dizer, ossos do ofício. As pessoas que vão à urgência sentem-se, na maior parte dos casos, doentes. Atenção, não vos estou a dizer que estão efectivamente doente mas sim que se sentem doentes. E portanto é de esperar que tenham um bocadinho menos de paciência para esperar pela sua vez. E que tenham um bocadinho menos de tolerância para alguma coisa que corra menos bem, como por exemplo um bug informático ou um bug verdadeiro a rastejar pelo chão. Isso não lhes dá o direito de se comportarem como animais e esquecerem as regras básicas de civismo e convivência em sociedade que os seus paizinhos e mãezinhas, que Deus os tenha, lhes ensinaram. Mas ainda assim, em mais de noventa por cento dos casos, as picardias e boquinhas a que os profissionais de saúde que trabalham na urgência estão sujeitos conseguem ser ultrapassadas com um belo de um sorriso amarelo ou um simples virar de costas.


Não, amigos e amigas, o que me desgasta não são os doentes. Aliás, eu digo várias vezes a quem me conhece que o que me custa menos quando vou trabalhar é ver doentes. Isso não me custa. Arrelia-me e ás vezes chega até a angustiar-me não saber o que é que eles têm ou não ter um plano bem definido para conseguir orientar as situações que me surgem à frente. Mas com isso posso eu bem.

 

Agora, aquilo que me desgasta à séria é a depauperação a que os serviços de urgência foram sujeitos nos últimos anos. Nomeadamente em termos de recursos humanos.  Não é por acaso que há vinte anos atrás as equipas de urgência eram constituídas por um internista, um infecciologista, um hematologista, um cardiologista, um pneumologista, um gastroenterologista e dois ou três internos de formação específica. Isto sim eram equipas verdadeiramente diferenciadas e multidisciplinares. Agora, a maior parte das equipas são constituídas por um, quanto muito dois, internistas e o resto são tudo internos, muitos deles acabados de sair da faculdade e, logicamente, com pouca ou nenhuma experiência em Medicina de Urgência.

 

Sim, sim, bem sei que fazer urgência custa, que dormir fora é chato, que todos temos famílias com filhos pequenos. E também sei que especialidades como a gastroenterologia e a Deusologia, perdão, cardiologia, são muitas vezes obrigadas a completar escalas de urgência das respectivas especialidades. Mas o problema é que, com o tempo, criou-se na cabeça de todos aquela ideia de que a urgência é aquele para o qual ninguém quer ir trabalhar. O sítio para onde só vai quem é obrigado ou não tem qualidade suficiente para estar noutro sítio. Todos reconhecem a importância da urgência para o bom funcionamento do Hospital e todos dão muito valor a quem dá o corpo às balas. Mas toda a gente de lá foge como um ortopedista de um ECG.

 

Ora, meus caros e minhas caras, se há sítio do Hospital onde a diferenciação técnica e a vocação são da maior importância, é a Urgência! E reparem como escrevi urgência com U maiúsculo para realçar a minha ideia. A Urgência é, na grande maioria das vezes, o local onde o primeiro contacto entre o doente e o Hospital é feito. E se há doentes com problemas de saúde autolimitados que provavelmente até resolveriam espontaneamente, há outros em que cada minuto conta. Há doentes que precisam de ser “agarrados” desde o primeiro momento em que põem o pé no Hospital. Mas para isso, para que haja gente motivada, com experiência e vocação na abordagem do doente agudo, é preciso que lhe seja dado algo em troca. Algo mais do que uma sandes de chourição e um sumo de marca branca às duas da manhã.

 

Sim, senhores administradores e senhoras administradoras, eu sei que os SIGICs é que dão guito ao hospital. Eu sei que é das listas de espera de cirurgias e consultas que se fala no telejornal da TVI ou da CMTV, se é que se pode considerar este último um telejornal. E também sei que nenhum de vocês é médico, profissional de saúde sequer. Que aquilo que estão habituados a ver são números e que a meta máxima que a vossa vista consegue alcançar é o final do mandato do partido que vos colocou no poleiro. Mas às vezes é preciso pensar um pouco mais além, sabem? Às vezes é preciso pensar que aquela velhinha que entra no SU com uma pielonefrite aguda, diagnosticada e tratada atempadamente num prazo de, vá, duas horas, se calhar gasta indirectamente muito menos dinheiro ao Estado do que a mesma velhinha, com a mesma pielonefrite, que tem o azar de ser levada à urgência de um hospital cujo nome não vou revelar mas que começa por “F” e acaba em “ernando da Fonseca”, que só é vista oito horas depois, talvez por alguém que não tem capacidades técnicas ou linguísticas para detectar precocemente essa tal pielonefrite e que é apanhada em choque séptico e acaba nos Cuidados Intensivos ventilada e sob técnica dialítica (ou para os mais eruditos, técnica de elítica).

 

O motivo pelo qual temos tanta gente desmotivada e desvocacionada nos Serviços de Urgência deste país deve-se, em parte, ao facto de a urgência ser vista não como um local estimulante onde se pode aprender e praticar aquilo que se gosta de fazer, mas como um castigo pelo qual a maior parte de nós tem de passar. Deve-se às condições de trabalho austeras e adversas que nos proporcionam para desempenhar a nossa actividade profissional. Deve-se à quantidade de gente que nos interrompe a perguntar quanto tempo falta para serem atendidos, ou para terem os resultados das análises, enquanto tentamos elaborar um raciocínio dos mais elementares. Deve-se ao facto de termos de ser nós, médicos, a explicar às pessoas que a TAC está avariada e que não vai ser possível fazê-la nas próximas seis horas. Ou explicar às famílias que não há mais macas na urgência e a dona Aurora de 93 anos vai ter de passar a noite sentada no cadeirão. Ou enfiada num corredor com uma porta automática a abrir e fechar a vinte centímetros da sua maca a cada cinco minutos. Ou explicar às famílias que não há vagas para internar os doentes. Ou que o sistema informático encravou outra vez. Ou que já temos quase vinte doentes assumidos em nosso nome e não podemos chamar mais ninguém para já. Isto enquanto discutimos casos clínicos e esclarecemos dúvidas com os desgraçados dos internos que formam fila à beira do nosso gabinete, enquanto tentam gerir o pânico que eles próprios estão a sentir, de forma a que nenhum doente lhes morra nas mãos ou recebam uma reclamação de uma família.

 

Há quem diga que para ser médico é preciso sofrer. Para se poder dominar esta arte que é tratar da saúde das pessoas é preciso visitar as trincheiras, saber o que é bom para a tosse, penar e arrancar cabelos em desespero. Porque antigamente era assim. E portanto porque é que agora não há-de continuar a ser assim? Eu pessoalmente não concordo em nada com essa posição. É que antigamente morria-se de lepra, faziam-se sangrias e os meninos comiam sopas de cavalo cansado ao pequeno-almoço. É suposto trazer essas práticas para os dias de hoje?


E se efectivamente eu estiver errado e nós, médicos da actualidade, estivermos todos muito mal habituados… Se de facto fizer sentido que tenhamos de trabalhar nas mesmas condições em que se trabalhava há trinta anos… Então pelo menos que sejamos intelectualmente honestos. Imitemos o antigamente para o mal e para o bem. Seja, continuaremos a fazer urgência em condições deploráveis. Mas pelo menos não será a receber oito euros à hora.

Se a Medicina fossem músicas dos Beatles

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Depois de, no outro dia, me submeter a uma maratona da discografia de um dos melhores grupos de sempre, deitei-me na cama e pensei para mim "Se a minha especialidade fosse uma música dos Beatles, qual seria?". Aquelas questões fracturantes que nos assolam a todos de vez em quando, certo?

 

E pronto, foi assim que nasceu este artigo. Shall we begin?

 

Medicina Interna - I'm So Tired

 


Começamos pelo mais óbvio. Esta pequena canção do famoso White Album (que na verdade foi apenas apelidado The Beatles) foi escrita por John Lennon após ficar cerca de três semanas sem conseguir dormir, durante um retiro espiritual na Índia, no qual era proibido consumir qualquer tipo de drogas, incluindo álcool. Terão sido os sintomas de privação a inspirar Lennon para compôr esta obra-prima? Ou talvez as saudades de Yoko Ono? Nunca saberemos, mas aquilo que vos posso dizer que me identifico a nível espiritual com esta música.

 

O estupor apático e melancólico, típico de uma saída de urgência, que caracteriza o início da canção, vai, a pouco e pouco, se transformando numa sensação de revolta contra esse mal terrível que é a insónia. No nosso caso, no entanto, a revolta não é necessariamente contra a falta de vontade de dormir, mas sim contra as poucas oportunidades que nos são dadas para o fazer. É caso para dizer: estudasses, Lennon. Estudasses.

 

Cardiologia - Here Comes The Sun

 

Mintam lá e digam-me que não ouvem esta música a tocar em loop contínuo na vossa cabeça cada vez que os deuses da Medicina descem do Olimpo para avaliar os doentes com enfarte com supradesnivelamento do segmento ST. De facto, esta pérola (passo a expressão) composta pelo quiet Beatle, George Harrison que, por motivos óbvios, a partir de agora será referido como o Beatle cujo nome não deve ser pronunciado, encaixa que nem uma luva no dia-a-dia de um cardiologista.


A forma como se faz luz no Serviço de Urgência de cada vez que eles entram pelo balcão de atendimento ou sala de emergência a dentro. Os sorrisos que se pintam nas faces de médicos, enfermeiros, auxiliares, doentes e familiares cada vez que são visitados por estas formosas criações divinas. Caramba, o Inverno acabou! Chegou o Sol! Chegou a Primavera! Amém!

Radiologia - I'm Only Sleeping

 

Os radiologistas são aqueles colegas que têm a oportunidade de trabalhar a partir de casa e relatar os exames a partir do conforto do seu lar. Cada vez mais serviços de urgência funcionam durante o período nocturno sem a presença de um radiologista. Se por um lado isto é chato, porque ficamos sem possibilidade de fazer ecografia, também acaba por ser bom. É bom para eles, que podem dormir no conforto do seu lar, mas também para nós, que não temos de passar meia hora ao telefone a tentar convencê-los da necessidade de fazer TAC abdominal a um doente em choque séptico sem ponto de partida definido. Fazemos o exame e pronto. Claro que por vezes podemos ser brindados com um ou outro comentário menos feliz no relatório do exame que pedimos, mas no fim do dia isso pouco interessa. Conseguimos o exame e já podemos ir levar o doente aos Cuidados Intensivos. Bendito IMI. Durmam à vontade, caros colegas! Bons sonhos!

 

 

Medicina Geral e Familiar - With A Little Help From My Friends

 

Achavam que os médicos preguiçosos que não quiseram estudar para tirar uma especialidade não iam ser visados aqui? Try again!

 

Pois é, estes nossos queridos amigos dos cuidados de saúde primários são muitas vezes desvalorizados, não só pela população mas, pior que isso, pelos próprios colegas. Vistos como os médicos que percebem poucochinho de muita coisa e muito sobre nada, para o povo estes são os médicos que precisam da ajuda dos amigos hospitalares para tomar qualquer tipo de decisão. E isto é injusto.

 

Imaginem-se a ter de fazer um Papanicolau. Ou a ter de dizer a uma mulher com fibromialgia de meia idade residente no Seixal que não lhe vão prolongar a baixa e que para o mês que vem de voltar para o emprego nos Correios que deixou há três anos. Com o marido e mais uns quantos gandulos à porta do gabinete a olhar para vocês com ar ameaçador. Não é agradável, pois não? Quem é que precisa de quem afinal?

Pois é. Tirem um bocado do vosso dia para dar um abracinho sentido aos vossos amigos do Centro de Saúde.

 

Internos do Ano Comum - Help!

 

Já que falamos em pedir e dar ajuda, quem não se lembra de ser um interninho do ano comum e dar por si perdido no meio de um serviço de urgência cheio de macas pelos corredores, vinte doentes à espera e quarenta acompanhantes em fúria por estarem há meia hora à espera que o seu familiar seja atendido? Todos nós já passámos por isso. Todos nós pedimos e gritámos por ajuda. Nem sempre esteve alguém do outro lado para nos ajudar, o que é triste. Vamos evitar que os mais "piquenos" de nós passem por aquilo que nós em tempos passámos, pode ser?

Se vires um IAC perdido, dá-lhe a mão e ajuda-o a atravessar a rua.

 

Psiquiatria - Lucy In The Sky With Diamonds

 

Ok, ok, eu sei que à primeira vista esta música parece não ter qualquer tipo de relação com os nossos amigos da metafísica médica. Mas pensem: conhecem algum psiquiatra que não goste desta música? Pois, eu também não. Será o tom psicadélico que caracteriza esta canção do álbum Sgt. Pepper Lonely Hearts Club Band que nos faz lembrar dos nossos colegas que tratam a mente? Bom, uma coisa é certa, certamente não terá rigorosamente nada a ver com o facto de a mensagem da música se relacionar com o consumo de drogas. E muito menos com o facto de o título ser uma referência a LSD. Wink wink.

 

(E a todos os Beatlemaniacs que vierem encher a caixa de comentários a dizer que a música não tem nada a ver com drogas e foi, isso sim, composta por John Lennon para o seu filho Julian, apenas vos digo: calem a boca, nerds. Daqui a um bocado vão dizer que o Paul McCartney não morreu nos anos 60. Nerds.)

 

Dermatologia - Money (That's What I Want)

 

Fiz uma pequena batota aqui. É que esta música, na verdade, não foi originalmente composta por nenhum dos Fab Four e corresponde, isso sim, a uma cover. Mas a sério, alguém achava que eu ia perder esta oportunidade única de mandar uma facada aos nossos colegas que escolheram a bela especialidade de Dermatovenereologia única e exclusivamente por gosto e vocação? Sim, sim, não teve nada a ver com a qualidade de vida nem com o verdinho. Nós sabemos. Wink wink, outra vez.

 

Eu, por sinal, não tenho problemas nenhuns em admitir: se tivesse tirado 100 na PNS escolhia Dermatologia. Sem pensar duas vezes. Sim, podia ser gozado por um cromo qualquer que tem uma página nas redes sociais. Mas não ia ter tempo sequer para ficar ofendido com isso, entre as consultas no privado e os jantares de gala da indústria farmacêutica. Enfim, vidas.

 

Emergência Médica - Why Don't We Do It In The Road

Eu sei que a especialidade de Emergência Médica formalmente ainda não existe, mas todos sabemos que há colegas que se dedicam exclusivamente a esta área, vá se lá saber porquê. E é a eles que dedico esta peça bluesy algo experimental composta por Paul McCartney para o álbum branco. Na verdade, tendo em conta a complexidade habitual das músicas dos Beatles, esta pode-se considerar bastante simples. Básica, na verdade. A letra consiste praticamente apenas na repetição infindável do título. Mais simples que isto era difícil. E na rua também é assim. Não há tempo para inventar. Não há tempo para raciocínios complexos. É entubar, imobilizar e siga para Bingo. Se tiver que ser no meio da rua, que seja.

- Estou sim, CODU?

- Sim, colega. Diga.

- Tenho aqui um doente politraumatizado. Acidente de viação, múltiplas fracturas. Glasgow de 10.

- OK, consegue chegar ao Hospital em quanto tempo?

- Dez minutos.

- Ok, então pode seguir.

- E a via aérea?

- Como assim?

- Não se protege a via aérea?

- Eles depois no Hospital entubam o doente, se necessário.

- Mas porque é que não o fazemos na rua?

 

Tcharan. Obrigado. Vou estar cá a semana toda. Aproveitem o buffet.

 

Medicina Paliativa - Good Night

 

 

Às vezes esquecemo-nos que parte da nossa função como médicos, mais do que diagnosticar, tratar ou curar, é proporcionar conforto e bem-estar ao nosso doente. Às vezes, dar a mão a um velhinho abandonado no Serviço de Urgência é quase tão importante como tratar a sua infecção urinária. Às vezes, explicar que vai ficar tudo bem, mesmo que corra tudo mal, é meio caminho andado para acalmar os medos e angústias da pessoa que temos à nossa frente. E por muito que nos custe, às vezes é preciso dar-lhe a mão. É preciso mostrar-lhe que não está sozinha na travessia para o outro lado. É preciso continuar a acenar à beira do rio, enquanto a pessoa entra no barquinho e segue a sua viagem. Às vezes é preciso aconchegar bem o nosso doente e dizer-lhe boa noite.

Eu (ainda) acredito no SNS

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No meio de uma urgência caótica, às quatro da manhã, rodeado de doentes em choque séptico, familiares completamente descompensados e colegas mais novos que pedem autorização para prescrever um paracetamol (e bem!), dou por mim a pensar:

 

"É mesmo isto que eu quero para a minha vida?"

 

Dou por mim a afogar-me no meio de um sistema viciado, corrompido, que serve apenas para servir os interesses de alguns, alguns esses que, por sinal, não incluem nem os doentes nem a maior parte dos profissionais que nele trabalham. Dou por mim a olhar à minha volta e a ver uma instituição moribunda, repleta de quintas, onde cada um se esforça acima de tudo para proteger a sua própria propriedade, desprovido de qualquer tipo de interesse em fazer com que as coisas mudem para melhor. Dou por mim envolvido numa engrenagem na qual são os piores de nós que se destacam. Os mais sacanas, aqueles que passam por cima de mais gente para chegar onde querem, aqueles que querem saber de tudo menos do bem estar dos doentes e utilizam a sua nobre arte para enaltecer o seu próprio ego frágil e alimentar as suas inseguranças. Aqueles que fazem tudo para silenciar os poucos que ainda se insurgem e tentam explicar que é possível fazer com que o Serviço Nacional de Saúde funcione melhor, para todos.

 

Dou por mim a trabalhar oitenta horas por semana quando poderia trabalhar no privado e ganhar o mesmo em metade do tempo. Dou por mim a ter de justificar a uma família furiosa porque é que a TAC que foi pedida há duas horas ainda não foi realizada quando se há alma que não tem culpa disso sou eu. Dou por mim a pensar que nessas mesmas duas horas, no privado, o doente já tinha feito a TAC e já se encontrava de receita na mão, desfeito em sorrisos e agradecimentos pelo bom tratamento que recebeu na instituição. Dou por mim a procurar infindavelmente doentes que não respondem à chamada e podem estar perdidos por esses corredores do Hospital a fora, simplesmente porque não existe nenhum profissional destacado e capaz de os orientar até ao meu gabinete de observação. Dou por mim a levar com os gritos de um doente com uma cólica renal, por estar há cinco minutos à espera que eu consiga sequer aproximar-me dele sem ser abordado por trinta pessoas que querem saber resultados de análises, onde fica o raio-X, quanto tempo falta para serem atendidos, etc.

 

Dou por mim a fazer o melhor que sei, que posso e que consigo com as condições que me são oferecidas, em nome dessa nobre criação que é o SNS. Dou por mim a achar que sou masoquista por continuar a achar que o meu futuro continua a ser o SNS, que lá é que se está bem, que não posso abdicar de uma carreira hospitalar, mesmo que não consiga justificar o porquê de achar isso. Dou por mim a olhar para os meus colegas e a ver gente acabada, farta, olheirenta, desmotivada, que se continua a arrastar pelos corredores a tentar fazer com que as coisas vão funcionando. Ou pior do que isso, acomodados. Esses são os piores, os acomodados. Aqueles que acham que está tudo bem, que o SNS tem pequenas falhas como qualquer sistema, mas que é nosso dever aguentar com e corrigir essas mesmas falhas, nem que seja em prejuízo da nossa própria saúde mental ou física. Aqueles que acham que sofrer faz parte da beleza de ser médico. Que abdicar de tempo de qualidade com a família e os poucos amigos são ossos do ofício. Que faz parte. É suposto. Sempre foi assim e, portanto, se eles tiveram de passar por isso nós também temos.

 

Dou por mim a fazer um paralelismo entre o SNS e o álbum conceptual dos Pink Floyd denominado Animals (por sua vez inspirado na obra de George Orwell, Animal Farm). Nele, a sociedade encontra-se dividida essencialmente em três escalões, ou castas. Os porcos são quem manda. Têm a seu mando as ovelhas, que são aquela franja da população que simplesmente se está nas tintas e não quer saber. Por fim, os cães são quem tenta agitar o sistema e retirar os porcos do poder, apenas para no fim perderem a batalha contra as ovelhas e terem de se retirar para evitar ser chacinados.

 

Pois bem, amigos e amigas, sinto-me um autêntico cão no SNS. Os poucos de nós que vão persistindo tentam aguentar as investidas dos porcos e das ovelhas até ao dia em que se fartam e abandonam o barco. Ou, neste caso, a quinta.

 

Começo a achar que chegou a minha hora de os acompanhar. Eu não preciso disto. Não preciso de me sujeitar a estas condições de trabalho que roçam o deplorável. Não preciso de continuar a dar a cara por erros e incompetências que não fui eu que cometi. Não preciso de continuar a ser vilificado por tentar mudar aquilo que acho que está mal, de forma a tornar o SNS um sítio minimamente agradável e motivante para todos, em vez de ser só para alguns. Não preciso de continuar a passar mais tempo no hospital do que em casa para poder almejar a ter um estilo de vida próximo daquele que sonhei ter e para o qual me esforcei. Não preciso de continuar a sentir que devo alguma coisa ao meu país, aos contribuintes ou aos doentes, porque já paguei o que devia. Com juros. Não preciso de me continuar a colocar a mim e aos meus em último lugar. Não preciso de continuar a sair mais tarde do que devia. Não preciso de continuar a fazer as funções de outros para que o sistema funcione. Não preciso de continuar a abdicar do meu bem-estar para que o sistema funcione. Não preciso de continuar a achar que para ser médico é preciso ser infeliz e miserável. 


Estou desmotivado. Estou muito desmotivado. Ainda acredito no Serviço Nacional de Saúde. Até quando é que eu não sei.

Celeste, uma boa mulher

Celeste era uma boa mulher. Católica devota, mãe de cinco filhos, dedicou toda a sua vida aos outros. Desde cedo soube como a vida custava quando foi obrigada a ficar em casa a tomar conta dos irmãos, em vez de ir à escola como sempre sonhou. Quando os irmãos ficaram crescidos, rapidamente foi trabalhar para a terra com os pais, gente humilde e sem grandes posses. Mais tarde, já casada, acabou por aprender a ler e concluiu a quarta classe, completando assim um dos seus sonhos de infância.

 

Celeste casou cedo. O seu marido era Jerónimo, homem de poucas palavras e afectos, trabalhador do campo e no fundo, bem lá no fundo, um bom homem. Certo, uma ou outra vez foi mais violento com ela, sobretudo depois de algumas noites de copos. Mas Celeste, como católica praticante que era, sempre deu a outra face. Mesmo quando Jerónimo achava que uma bofetada não era suficiente. Mas vá, no outro dia de manhã pedia sempre desculpa pelo que tinha feito, jurava que não voltava a repetir e, a pouco e pouco, Celeste acabava por perdoá-lo. Afinal, se Jesus perdoou quem o crucificou, porque não havia ela de perdoar o homem a quem prometeu não abandonar? Na saúde e na doença, na alegria e na tristeza, certo?

 

Mas com o tempo, Jerónimo acabou por amolecer. Sobretudo após o nascimento dos netos, foram raras as vezes que lhe voltou a bater. E nunca com a força com que o havia feito no passado. Certo, Celeste passou um mau bocado quando o Senhor resolveu chamá-lo para junto Dele. Afinal, uma mulher passa a vida a dedicar a sua vida a outro ser, a transformá-lo de um ser abrutalhado num companheiro fiel com quem ainda esperava viver muitas aventuras... E o homem fina-se assim? Bom, pelo menos servia-lhe de consolo saber que Jerónimo estava com o Criador. Ou melhor, assim pensava ela. Sabemos nós que homem que bate em mulheres tem um cantinho bem especial e quentinho reservado para ele lá em baixo.

 

Mas não façamos essa desfeita à Celeste. Deixemo-la viver na ilusão de que um dia irá reencontrar o seu mais-que-tudo, pai dos seus filhos. Filhos esses que, valha-nos o Senhor, não herdaram nenhuma das características menos atractivas do pai. Carinhosos e atenciosos, sempre trataram Celeste como a princesa lá de casa, pensamento que fizeram questão de incutir aos filhos, quando os tiveram. E portanto, com o apoio da família, Celeste foi a pouco e pouco ultrapassando o trauma da viuvez.

 

Claro, se devota era quando casada, mais se tornou depois de viúva. Não havia volta a dar, os Domingos eram o dia de ir visitar o Senhor. Desde cedo tentou incutir os seus rebentos a seguirem as suas pisadas e a prostrarem-se semanalmente defronte de umas estátuas enquanto ouviam o senhor padre recitar os feitiços mágicos que pareciam hipnotizar toda a aldeia, mas infelizmente nenhum deles se tornou católico tão praticante como ela. Sinais dos tempos, dizia para si enquanto tentava convencer-se que o importante era que praticassem o bem, mesmo que se recusassem a conversar com o Criador com a mesma frequência que ela fazia.

 

Verdade seja dita, Celeste criou cinco filhos exemplares. Conseguiu ser mãe, avó, esposa, trabalhadora, conselheira, amiga... Tudo numa só pessoa. Nunca foi de chamar muito a atenção, mas quem a conhecia reconhecia-lhe o valor e o espírito guerreiro, ainda que bondoso. E, na verdade, não era preciso muito para reparar nos calos dos dedos resultantes de anos e anos a segurar enxadas e ancinhos, ou os nós dos dedos deformados de mais uns quantos anos a fazer uns biscates a costurar vestidos para gente de bem, de forma a poder complementar assim o orçamento familiar e garantir que nenhum dos filhos era privado de cumprir o sonho de estudar, se assim o quisesse.

 

E talvez todo esse esforço tenha compensado quando os anos começaram a somar-se sob os ossos cansados desta nossa avozinha querida. À medida que as costas iam encurvando, as rugas da face se tornavam mais expressivas e pronunciadas e os cabelos iam prateando, também o amor e o carinho que recebia dos filhos e netos ia aumentando. E dos bisnetos também, não fossem eles demasiado novos para sequer compreender o conceito de "mãe da avó".

 

E eis que, finalmente, depois de uma vida dedicada aos outros, o seu dia chegou. Na verdade, Celeste não se recorda bem do que se passou nesse dia. Lembra-se de acordar num sítio estranho, diferente, com uma grande quantidade de pessoas vestidas de branco à sua volta, pessoas essas que não conhecia, mas que lhe transmitiam um conforto estranho quando olhavam para ela de forma enternecida e lhe seguravam a mão. Celeste lembra-se de terem falado com ela e também de ter respondido, mas se lhe perguntarem agora do que falaram, certamente não será capaz de se lembrar. Conversas vãs, talvez.

 

A verdade é que, à medida que o tempo passava, o olhar ternurento dessas meninas e alguns meninos vestidos de branco que a rodeavam começou a transformar-se num esgar de preocupação. As bocas e olhos que antes sorriam para ela rapidamente se converteram em gritos, expressões de pânico. Aquela dança que quase os fazia flutuar em torno dela convertia-se rapidamente numa série de movimentos bruscos, toscos, em que muitos deles se atropelavam uns aos outros. A pouco e pouco mais e mais gente foi chegando. Primeiro novos, depois cada vez mais velhos, olhavam para ela com ar preocupado, coçavam a cabeça e afagavam a barba, como se algo lhes estivesse a escapar.

 

A verdade é que, de facto, Celeste não se sentia bem. Algo nela crescia, uma sensação de desconforto que insistia em não passar, mal definida, ora no peito, ora nas costas. A cabeça ficava mais e mais leve e Celeste sentia cada vez mais dificuldade em concentrar-se nas caras que a rodeavam e nos olhares transtornados que lhe lançavam. Os seus contornos esbatiam-se rapidamente e aquilo que antes eram pessoas rapidamente se transformou em vultos. Subitamente, tudo escureceu. Lá ao fundo, bem lá ao fundo, a romper o silêncio, Celeste ouviu a voz de uma mulher dizer, de forma seca:

 

"Sôtor, acho que ela vai parar".

 

Quando voltou a clarear, todos os vultos e sombras haviam desaparecido. O desconforto e mal estar que se vinha a acumular nos últimos minutos transformava-se agora numa sensação de leveza que nunca antes havia sentido, uma felicidade imensa, indescritível por palavras, que a fazia ascender em direcção às estrelas. A pouco e pouco, outros vultos iam surgindo. Vultos esses que rapidamente se convertiam em faces, incrivelmente bem esculpidas, de traços angelicais, que a fulminavam com ternura no olhar e a enchiam de alegria. Era quase como se tivesse nascido novamente. À medida que ascendia, cada vez mais Celeste tinha a certeza que tinha morrido e estava a ir para o Céu. E as faces que a olhavam só podiam ser anjos.

 

Celeste estava feliz. Finalmente, depois de uma vida dedicada aos outros, o momento dela havia chegado. Ela era a protagonista. Que especial se sentia por ser a convidada de honra daquele sítio tão especial que era o Paraíso. Será que ia reencontrar a sua mãe? A sua irmã Jacinta, de quem tanto gostava? O amor da sua vida, Jerónimo? Tantas questões, tanta antecipação! Mal se conseguia controlar. Um coro composto pelas mais belas vozes que alguma vez tinha ouvido entoava cânticos de celebração, como que a anunciar a chegada de mais uma alma à terra prometida. As lágrimas que caíam da face de Celeste eram de alegria, pura alegria, que transbordavam sob a forma se água com cloreto de sódio que os seus sacos lacrimais não mais conseguiam conter.

 

O momento havia chegado. Celeste continuava a ascender e outro vulto, este maior, de corpo inteiro, se ia assomando no seu campo visual. Uma figura masculina, de barbas brancas e longas, vestida de branco, que a fitava com um sorriso discreto, quase como se lhe estivesse a dar as boas-vindas à sua nova casa. Na sua mão direita Celeste pôde ver uma grande chave dourada, que de certeza que servia para a abrir o gigante portão, também dourado, que ia surgindo lá ao fundo, entre as nuvens.

 

"Bem-vinda, minha filha", disse o homem, com um tom de voz grave e profundo, mas terno.

 

Antes que Celeste pudesse sequer responder, sentiu como que uma corda a apertar-se com força à volta do seu pescoço. A luz desvaneceu-se rapidamente e todas os seres que sorriam e cantavam para ela foram obliterados por um relâmpago que iluminou todo o céu e apagou todo aquele cenário idílico que se desenhava à frente dos seus olhos. Depois do relâmpago, Celeste sentiu uma forte pressão a ser aplicada bem no meio do seu peito. Uma não, na verdade várias, que comprimiam a sua caixa torácica com uma força indescritível, que lhe tirava o ar e que a empurrava a pouco e pouco novamente para baixo.

 

Desesperada, Celeste tentou lutar. Sempre foi uma lutadora em vida, ainda que nunca o tenha feito de forma violenta, mas agora sentia que era imperativo debater-se. Aquele era o seu momento, ninguém tinha o direito de lho tirar. Mas nada podia fazer contra a força sobrenatural que lhe perfurava o esterno de forma ritmada e a trazia de volta à realidade. O desconforto e mal estar que antes havia sentido voltava a desenhar-se nas entranhas do seu ser, desta vez mais forte, como se as mãos invisíveis que lhe comprimiam o peito os estivessem na verdade, a fazer entrar pelo seu peito a dentro.

 

De repente, as compressões cessaram. Após poucos segundos, um novo relâmpago iluminou os céus. Este mais forte ainda que o primeiro, quase a cegava tal era a violência do impacto. Novamente, as mesmas pessoas que inicialmente a acompanharam neste sonho bizarro, aqueles miúdos e miúdas rodeadas por alguns seres mais velhos, todos vestidos de branco, iam começando novamente a surgir. Desta vez, sorriam de forma maldosa, como se tivessem satisfeitos por interromper de forma tão brusca aquele seu momento tão bonito. Lá ao longe, Celeste reconheceu algumas caras. Eram dois dos seus filhos, com as respectivas mulheres ao lado, com os olhos esbugalhados repletos de lágrimas, mãos ao peito, em pose de antecipação, como se algo de muito grave tivesse acontecido mesmo à sua frente.

 

Depois do segundo relâmpago, aquela pressão que lhe esmagava o peito voltou, mais forte que nunca. As sombras que a rodeavam iam desaparecendo a pouco e pouco e, mais uma vez, os vultos em seu redor tornaram-se cada vez mais nítidos. Celeste voltou a ouvir vozes, falando entre si de forma assertiva, sem no entanto conseguir compreender o que diziam. À medida que o seu peito ia sendo ciclicamente comprimido, o olhar de apreensão na cara dos seus filhos ia dando lugar a um esgar esperançoso, um segurar de mão apertado, um abraço vigoroso entre irmãos, quase como se festejassem uma grande vitória. As vozes dos que a rodeavam ficavam cada vez mais claras, quase a pontos de achar que lhe gritavam todas aquelas ordens e indicações ao ouvido. A certa altura, as compressões cessaram novamente. Desta vez todas as pessoas que corriam à sua volta pararam, olhando para ela com antecipação. Um dos homens mais velhos que assistia ao episódio chegou-se à frente, junto a Celeste e disse:

 

"Tem pulso. Liguem para os Cuidados Intensivos".

 

Profissionais de saúde. A atrasar encontros com São Pedro desde 1767.

 

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Olá, eu sou o Zol e quero muito ajudar a Matilde

Olá. O meu nome é Zolgensma. Ok, na verdade não é bem assim que me chamo. O meu verdadeiro nome é Onasemnogene Abeparvovec-xioi. É, quem me baptizou tinha quase tanto jeito para escolher nomes como têm aqueles casais que resolvem chamar Fátima Letícia ou Soraia Andreia às filhas. Depois lá me arranjaram um nome comercial mais catita, Zolgensma, que ainda assim faz com que muita gente morda a língua quanto o tenta pronunciar. Para facilitar as coisas, podes chamar-me Zol.

 

Quem sou eu? Ora, ainda bem que perguntas. Sou um fármaco novo, criado na terra dos arranha-céus e das celebridades que se tornam presidentes, vulgo Estados Unidos da América, por um grupo de cientistas que, após muitos anos de pesquisa e trabalho, finalmente tiveram a ideia brilhante de pegar no meu pai, um daqueles vírus chatos que só costuma dar chatices em doentes imunossuprimidos, o Cytomegalovirus e juntaram-no com a minha mãe, uma sequência genética criada em laboratório a quem os cientistas gostam de chamar vector e, após um longo romance... Voilá! Aqui estou eu.

 

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(Este sou eu. #nofilter)

 

Já vos expliquei como fui concebido mas ainda não vos expliquei qual é a minha função. Pois muito bem, fui criado especificamente para tratar uma doença genética rara, que afecta menos de uma criança por cada dez mil nascimentos, mas altamente debilitante e quase uniformemente fatal. Essa doença chama-se atrofia muscular espinhal e basicamente, sem querer entrar em pormenores muito chatos, consiste num defeito num gene, chamado SMN1, que produz uma proteína, também ela chamada SMN. Sim, esta gente é toda muito pouco original. Gastaram a "criatividade" toda quando me escolheram o nome. Enfim, o que essa proteína faz é permitir a sobrevivência dos neurónios motores da criança, que lhe permitem deglutir, mexer-se e respirar. Pronto, é verdade que o corpo humano tem outro gene semelhante que faz a mesma coisa, chamado SMN2. O único problema é que esse gene é mais preguiçoso do que um dermatologista no serviço de urgência, como tal só produz 10% da quantidade necessária de proteína para garantir a sobrevivência dos neurónios.

 

E, portanto, quando o principal gene produtor de SMN está defeituoso, a falta desta proteína leva ao desenvolviment de atrofia muscular espinhal. Esta doença manifesta-se geralmente pouco depois do nascimento e cursa com sintomas chatos como dificuldade na amamentação, hipotonia e dificuldade respiratória. Muitas das crianças que sofrem desta doença necessitam de suporte ventilatório contínuo ao fim do primeiro ano de vida e uma grande parte delas acaba mesmo por morrer durante a infância.

 

É verdade, isto é tudo muito deprimente. Mas calma, nem tudo é mau! Porque desde que eu comecei a ser testado nos ensaios clínicos, a verdade é que a maior parte das crianças que me tomou manteve-se livre de suporte ventilatório contínuo durante a duração do estudo, o que é óptimo! Não faço milagres, não sou perfeito, mas uma coisa é certa: pareço ser a melhor hipótese que estas crianças têm de ter uma infância próxima do normal.

 

Eu sei que pareço um agente imobiliário a tentar vender um T2 na Reboleira, mas as vantagens não acabam por aqui! Uma vez que sou uma terapia genética, basta ser administrado uma única vez e o tratamento fica concluído. Sessenta minutinhos de infusão e já está! Claro, a batalha não acaba por aí, seguem-se muitos anos de reabilitação e outras medidas de suporte tão ou mais importantes que eu, mas pelo menos a minha parte fica despachada!

 

Claro, nem tudo são vantagens. Apesar de não ter propriamente contraindicações, a verdade é que em algumas crianças causo lesão hepática, por vezes grave. Mas enfim, nada que o paracetamol também não cause, não é verdade? Além disso, com um mês de corticóides a coisa costuma melhorar. Infelizmente, no entanto, a minha principal desvantagem não é essa. É mesmo o preço. É que eu sou muito, muito caro. Caro a pontos de provavelmente em Portugal só o Joe Berardo me conseguir adquirir, com o dinheiro que o Estado tão gentilmente lhe "emprestou". Custo perto de dois milhões de euros, o que é uma enormidade para o português médio. Têm de se lembrar que elaborar-me custou e continua a custar muito dinheiro, envolveu muitos anos de pesquisa e trabalho de laboratório por parte de muitos cientistas, patentes, ensaios clínicos, já para não falar no transporte e na minha acomodação. Esse, meus amigos e amigas, é o meu principal defeito e quanto a isso nada posso fazer.

 

Mas enfim, voltando à minha história. Nasci e vivi toda a minha vida na terra dos livres e lar dos bravos, tratei algumas crianças, até que em meados de 2019 conheci uma menina recém-nascida chamada Matilde. A Matilde tem atrofia muscular espinhal e é uma excelente candidata a ser tratada por mim. Mal a conheci, ainda que à distância, percebi logo que a minha função era tratá-la. Não consigo deixar de olhar para os olhos dela e pensar em tudo aquilo que ela vai conseguir atingir na vida depois de me tomar. Quem sabe se não se poderá tornar uma cientista famosa e criar mais fármacos para ajudar outras crianças, como eu?

 

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(Olha-me para esta riqueza! <3)

 

Infelizmente, as coisas não estão muito fáceis para a Matilde. Actualmente está internada na sequência de uma infecção respiratória, com insuficiência respiratória. Os pais da Matilde têm feito os possíveis para divulgar o caso, foram à televisão, criaram uma página nas redes sociais e, felizmente, as pessoas estão a demonstrar uma solidariedade tremenda e a ajudar conforme podem. O tuga é mesmo assim. Passa à frente nas filas do supermercado, estaciona em segunda fila, mas também consegue ser muito solidário quando quer! A pouco e pouco, os pais da Matilde vão conseguindo amealhar uma quantia proveniente de donativos, que é jeitosa mas ainda não é suficiente para me comprar.


E o tempo urge! Quanto mais tarde eu for administrado, maior é a quantidade de neurónios que morrem e maior é também a dependência com que a Matilde vai ficar! É urgente que eu chegue o mais depressa possível a  Portugal, esse país estranho em que as pessoas não têm armas e que metade dos meus conterrâneos acha que faz parte de Espanha! Por isso te peço, a ti que estás a ler esta minha, vá, auto-biografia: se tens possibilidade, ajuda a Matilde. Faz um donativo. Pouco ou muito, não importa. E divulga. Divulga muito o caso da Matilde. Mostra às outras pessoas como é importante a minha ajuda, o quanto antes. Ao fazê-lo, estás a dar a melhor hipótese à Matilde de ter uma infância e uma vida com qualidade.

 

Este é o NIB da conta para a qual podes fazer um donativo para ajudar a Matilde:

PT50 0035 0685 00008068 130 56

Caixa Geral de Depósitos

Matilde Sande

 

Esta é a página de Facebook da Matilde:
Matilde, uma bebé especial

 

Obrigado a todos e a todas! Hoje é pela Matilde, amanhã pode ser pelo teu bebé.