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Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

Carta aberta à enfermeira Vanda Veiga

 

Cara colega, antes de mais permita-me que lamente o facto de só agora ter tido conhecimento do seu depoimento em pleno horário nobre de uma estação de televisão pública.
 
Infelizmente, conforme sabe uma vez que também trabalhou em urgência, o nosso estilo de vida agitado e desregulado nem sempre nos permite manter na "crista da onda" no que diz respeito a assuntos do dia-a-dia. Ainda assim, mais vale tarde que nunca.
 
Quero em primeiro lugar dar-lhe publicamente os parabéns pela coragem que teve em denunciar de forma aberta e sem rodeios aquilo que de mal se passa no seu ex-local de trabalho. Com três ou quatro exemplos directos, explícitos e certeiros conseguiu transmitir as frustrações que todos sentimos no nosso dia-a-dia, quer façamos urgência quer não.
 
Do seu depoimento aquilo que me marcou mais foi quando disse que "isto não é nenhum pico". Aqui eu não podia concordar mais consigo. Aquilo que se passa nas urgências dos hospitais públicos deste país não tem a ver com picos de gripe ou do que for. Os examplos que deu das macas em corredor, dos doentes com convulsões aos quais não conseguimos ter acesso, das pessoas que falecem sem que ninguém dê conta, ou então da TAC que avaria, das horas que os doentes esperam para ser transportados entre hospitais ou serviços, do número de idosos que temos a pernoitar sentados em cadeirões ou a passar quatro dias numa maca... Nada disso tem a ver com picos. É o nosso dia-a-dia no Serviço de Urgência.
 
Mas o problema aqui é que nenhuma das entidades superiores, como as caracterizou, dá a cara. Mais rapidamente vemos aqueles que supostamente mandam em nós descer à urgência para tirar umas fotos com o Marcelo do que os vemos a explicar cara-a-cara a uma família porque é que o seu familiar de 97 anos está sentado há quase vinte e quatro horas num cadeirão. Disso eles não querem saber, não lhes interessa.
 
Por isso digo e repito: gripes, golpes de calor, Legionellas, sarampos e outros surtos mediáticos são pura e simplesmente desculpas para justificar o mau funcionamento diário de grande parte dos serviços de urgência deste país.
 
Utilizou também o exemplo de países de terceiro mundo onde já trabalhou, fazendo o paralelismo com o nosso e isto mereceu-lhe uma repreensão por parte da moderadora do debate. Portugal não é rico, é certo. E bem sei que no global os cuidados de saúde que prestamos à nossa população são incomparavelmente melhores que os prestados em países como a Guiné. Ainda assim, é abismal pensar que no décimo sexto país com a taxa de impostos mais alta do mundo, ainda há gente que passa os seus últimos momentos de vida amarrado a uma maca no serviço de urgência com gente a tossir-lhe em cima e a gritar.
 
Por fim, deixe-me dizer-lhe que tenho pena mas compreendo que tenha desistido de trabalhar na urgência. Mas por outro lado ainda bem que o fez, caso contrário o país não tinha ouvido o seu depoimento, porque toda a gente sabe que as represálias existem e sentem-se na pele.
 
Era bom que mais de nós fôssemos como a colega.
 
Um bem-haja.
 
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