O auto da barca da urgência, parte I
Vamos inspirar-nos na obra de Gil Vicente e imaginar que no momento em que acabamos de morrer chegamos a um rio. Vamos ter de atravessar esse rio numa de duas Barcas: a Barca do Paraíso, comandada por um anjo e a Barca do Inferno, comandada por um demónio. A primeira personagem a chegar é uma pessoa que foi acompanhar o seu pai à Urgência e acabou por ser ela a morrer.
- Início de cena. Acompanhante chega ao cais onde as barcas se encontram atracadas -
ACOMPANHANTE
Que se passou? Que sucedeu?
Que sítio é este? Quem é esta gente?
Meu pai é que estava doente
E quem se finou fui eu?
Ó da barca, quem lá vai?
Para que sítio viaja esta nau?
De certeza que não é tão mau
Como aquele onde ficou meu pai!
DIABO
Quem se acerca? Quem lá vem?
Ora, se não é o meu amigo!
ACOMPANHANTE
Deves estar a gozar comigo!
Cruzes credo, amém!
DIABO
Pensas que não virás aqui?
O que te causa tanto espanto?
Achas que é por estares num pranto
Que a outra barca é para ti?
ACOMPANHANTE
Que barca é essa que me dizes?
DIABO
A barca das pessoas felizes.
ACOMPANHANTE
Vou já para lá!
- Aproxima-se da Barca do Paraíso –
ACOMPANHANTE
Ó da barca! Oh barca bela!
Deixa-me entrar, pois quero viajar nela!
ANJO
Que queres tu?
ACOMPANHANTE
Dá-me guarida, belo anjo
Que ali aquele marmanjo
Acha que vou ter com Belzebu!
ANJO
E irás, claro está.
ACOMPANHANTE
Não digas tal asneira
Que deixei meu pai de qualquer maneira
E vim logo a correr para cá!
Tratei tão bem dele na velhice
Porque me causas tal chatice?
ANJO
Dizes tu que o trataste bem
Abandonando-o no Hospital
Estando ele bem ou estando ele mal
Tal como fizeste à tua mãe?
ACOMPANHANTE
Perdoa-me, senhor, foi sem querer!
Se o fiz foi por ignorância
A culpa é dos médicos e da sua ganância
Nunca o trataram como deve ser!
ANJO
Filho maldito, some-te daqui!
Aqui não embarca gente interesseira
Usaste os teus pais à tua maneira
Aquela barca é melhor para ti!
- O acompanhante aproxima-se novamente da Barca do Inferno –
DIABO
De volta tão cedo, filho lindo?
Que foi que ele te disse?
ACOMPANHANTE
Que dali me sumisse
Pois não era bem-vindo…
DIABO
Claro está, para ti não há paz
Agora entra na Barca, que tarde se faz!
ACOMPANHANTE
Assim o farei, demónio malvado
Mas se não me tratares em condições
Peço o livro de reclamações
Pois sou eu que te pago o ordenado!
DIABO
Dizes isso outra vez e vais a nado
Chegas ao Inferno à Barca atrelado!
- O acompanhante entra na Barca -
ACOMPANHANTE
Se soubesse que ia parar ao castigo infernal
Trataria o meu pai de outra forma
Não lhe roubava a reforma
Nem o abandonava no Hospital
DIABO
Se o arrependimento matasse muita gente morreria
Porém não tenhas pressa
Vamos receber outra remessa
E o teu pai vem fazer-te companhia!
- Chega o pai do acompanhante -
DIABO
Ora, ora, seja bem aparecido!
Vejam só quem não tardou a chegar
Faça lá o favor de embarcar
Que já cá canta o seu filho querido!
PAI
Onde estou eu? Que é feito de mim?
Ainda há pouco me estavam a tratar
Só ouvi dizerem “sôtor, ele vai parar”
E quê?! Não me digas que me finei assim!
DIABO
Estás morto e em breve estarás enterrado
Mas não fiques triste, nem tudo é mau
Pois este marinheiro e a sua humilde nau
Irão receber-te com todo o bom grado!
PAI
E para onde vai esta caravela?
DIABO
Para o Inferno! E tu vens nela!
PAI
Aí eu não entro nem obrigado
Cruzes credo, nem pensar!
A minha sorte vou tentar
Naquele outro barco ali atrelado!
- Dirige-se à barca do paraíso –
ANJO
Que queres tu? Quem te convida?
PAI
Querido anjinho, deixa-me entrar!
Nunca fui homem de muito pecar
Tu sabes quão santo eu fui em vida!
ANJO
Se eras tão casto como dizes ser
Porque é que quando ficaste enfermo
E até a tua vida ter termo
Te fartaste de comer e beber?
Dizias que tomavas a medicação
Mentias ao médico, sempre com engodos
Na urgência gritavas com todos
Quando lá entravas por hipertensão
Foste ao Hospital por tudo e por nada
E isso custou caro a muita gente
Que estava muito mais doente
Do que tu e a tua unha encravada!
PAI
Doente é doente, tem direito a gritar
E se sou assim tão um sujeito tão mau
Não merecedor de entrar na tua nau
Porque é que todos me tentaram salvar?
ANJO
Pois essa é a função do médico e enfermeiro
Salvar o santo e também o pecador
Tanto o ladrão como o benfeitor
Ganhar mal e salvar o mundo inteiro!
Nesta nau não entrarás
Some daqui velho abusador
Vai fingir que estás com muita dor
Lá para a barca de Satanás!
- Pai aproxima-se novamente da barca do Inferno –
PAI
Demónio, embarquemos sem demora
Que aquele anjo me chamou cínico
Pois na urgência fiz queixa de um clínico
Por me ter feito esperar uma hora
DIABO
Viajemos então para as portas do Inferno
Senta-te ali junto do teu rebento
Pois mais uns quantos virão a julgamento
E conhecerão também o fogo eterno!
(CONTINUA)