Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

O mito dos anestesistas a 500 euros/hora

MAC.png

 

Caros jornalistas,

 

Espero que o vosso Natal tenha sido bom, que tenham comido muitas rabanadas, recebido e distribuído muitas prendas, rodeados pelas pessoas que vos querem bem e são especiais para vocês.

 

Gostava que tivessem aproveitado esta época de paz e harmonia para nos dar uma trégua na perseguição que nos fazem. No entanto, vocês decidiram passar a quadra natalícia a gritar a plenos pulmões que os médicos anestesistas se recusaram a trabalhar durante o Natal na Maternidade Alfredo da Costa, mesmo depois de lhes ter sido oferecido o salário milionário de 500 euros por hora.

 

Durante a noite e dia de Natal não receberam grande resposta, até porque nós médicos temos mais que fazer do que perder o nosso tempo a responder a provocações vindas de seres mal resolvidos que mais não fazem do que explorar o ódio irracional que um povo também ele mal resolvido tem a uma classe profissional. Gostamos de fazer coisas mais produtivas com o nosso tempo, nomeadamente, não sei... Tratar doentes? Passar tempo de qualidade com a nossa família, até porque não sabemos quando teremos a próxima oportunidade de passar o Natal com ela?

 

Mas atendendo a que o Natal já passou e regressamos todos às nossas preocupações mundanas, chegou a altura de responder a todas as acusações que nos têm feito.

 

Em primeiro lugar, preciso de vos dizer que vocês são mentirosos. A sério, não há outra forma de colocar a questão. Na maior parte das vezes o que vocês fazem é manipular a verdade da forma que vos é mais conveniente. Por exemplo, caçam um médico a dormir no seu turno e, sabendo que isso vende jornais e rende cliques, fazem disso um headline. “Médico dorme durante o turno” é a manchete que se lê na primeira página do pasquim para o qual trabalham. E isto é verdade, não há volta a dar. O médico estava mesmo a dormir durante o seu turno. Vocês só se esquecem de informar o público que, por um lado, é permitido, aliás, é consagrado no código de trabalho que o profissional que efectue turnos nocturnos possa descansar durante os mesmos e que, por outro lado, esse mesmo profissional que vocês caçaram a dormir, é um ser humano, muitas das vezes com mais de 60 anos, que já se encontra a trabalhar há mais de doze horas. Isso sim é ilegal, trabalhar mais de doze horas seguidas. Mas essa guerra não vos interessa, porque vocês sabem o ódio que o tuga tem da classe médica e enquanto explorar esse ódio vos render vendas e cliques, vocês vão continuar a fazê-lo.

 

Mas desta vez foi diferente. Desta vez não manipularam informação. Desta vez fizeram algo pior, mentiram. Disseram que os médicos anestesistas se recusaram a trabalhar na MAC no Natal por 500 euros à hora. Isto é falso.

 

A nenhum, repito, a nenhum médico português foi oferecido esse valor para trabalhar em local algum ou data alguma. Isto é só mentira, ponto final.

 

Abaixo mostro-vos o excerto do e-mail que um colega, cuja identidade não vou revelar, recebeu como proposta para trabalhar na MAC durante o Natal.

 

500 euros.jpg

38 euros. Menos de um décimo do que vocês alegaram. Não vos parece que uma margem de erro superior a 90% é um pouco excessiva, até para vocês? E se têm dúvidas em relação à veracidade da imagem, tudo o que precisam de fazer é abrir uma rede social (qualquer uma!) e fazer a vossa própria pesquisa.

 

Agora que já esclarecemos o erro, ou melhor, a vossa mentira, deixem-me fazer-vos outra pergunta. Um vencimento de 500 euros por hora corresponde a 6000 euros por um turno de 12 horas, que é o equivalente a quatro ordenados mensais de um médico. Ou seja, se perante valores desta ordem, ninguém se chegou à frente para trabalhar no Natal, isso significaria uma de duas coisas: ou todos os médicos anestesistas são podres de ricos, a pontos de não se darem ao trabalho de fazer um turno de 12 horas por 6000 euros, ou então são apenas estúpidos. Se já concluímos que a primeira opção não é verdade, até porque eu já vos disse qual é o salário médio de um médico na função pública, resta-me achar que com as vossas “reportagens” vocês estão apenas a chamar-nos estúpidos. É suposto ficar ofendido? Estou confuso.

 

E não é só a nós que estão a ofender. Estão a ofender todos os portugueses por acharem que alguém com um QI superior ao de uma banana iria acreditar que nenhum, sublinho, nenhum médico anestesista se iria chegar à frente para receber 6000 euros por um turno de doze horas.

 

No fundo, vocês jornalistas, estão a concluir que Portugal é um país de burros e que nós, médicos, somos os mais burros de todos. É isso?

 

Claro que a culpa não é só vossa. Aliás, a principal culpada de todo este desentendimento é a mente brilhante que, em menos de seis meses de “reinado”, já disse que enfermeiros grevistas são criminosos e que médicos devem ficar presos ao SNS mais tempo para pagarem (ainda mais) o seu curso. Ministra Marta Temido, a culpa de tudo isto é maioritariamente sua, porque foi você que apontou para estes valores em primeira instância e, portanto, é a si que dirijo as minhas próximas palavras.

 

Em primeiro lugar, devia também ter vergonha por ter mentido. A sua mentira não me surpreendeu tanto, até porque se houve alguém que ensinou os jornalistas a manipularem a verdade certamente terão sido os políticos. Ainda assim, custa-me a crer que tenha acreditado que podia difamar assim uma classe, a classe que representa, sem receber resposta.

 

Em segundo lugar, gostaria de lhe endereçar a seguinte pergunta: porque é que nos últimos anos não abriu uma única vaga para a especialidade de Anestesiologia na Maternidade Alfredo da Costa? É que fazem parecer que o facto de o Serviço de Medicina Materno-Fetal da MAC depender de anestesistas contratados por empresas prestadoras de serviços é responsabilidade nossa e isso deixa-me confuso. Quer profissionais nas instituições? Experimente abrir vagas. Costuma resultar.

 

Em terceiro lugar, gostaria de a convidar a reflectir sobre o facto de que nem a 37 euros por hora conseguiu arranjar quem cobrisse o turno de Natal na MAC. Não acha isso estranho? Não acha que isso pode ter a ver com a degradação progressiva das condições de trabalho nessa mesma instituição, tal como em muitas outras? Não acha que você e os seus antecessores poderão ter alguma responsabilidade nesse facto? Não sei, estou apenas a atirar esta ideia para o ar.

 

Por fim, deixei o tópico mais sensível para o fim. Vamos imaginar que não mentiu e que, de facto, o Estado ofereceu mesmo 500 euros por hora para que as parturientes e puérperas da MAC pudessem ter assistência médica da especialidade de Anestesiologia durante o Natal. Já concluímos que esse dinheiro não vai para os médicos, portanto a questão para o prémio final de um milhão de euros é:

 

Para onde vão os restantes 462 euros?

 

Apesar de ser a pergunta-chave, acredito que seja aquela que menos interesse tem em responder, porque isso implicaria abordar a temática das empresas prestadoras de serviços, que não passam de uma forma de encher os bolsos a meia dúzia de intermediários que as gerem e que talvez, mas apenas talvez, sejam seus amigos. Não se preocupe, ninguém se vai ralar com isso. Afinal, vivemos todos neste país à beira-mar plantado, transparência de contas públicas é uma temática chata que não interessa a ninguém. Muito menos aos media. Enquanto eles, você e a sua classe conseguirem arranjar estes estratagemas para imputar na nossa classe profissional as responsabilidades da vossa incompetência, estará certamente tudo bem. Vocês ficam contentes, os pasquins ficam contentes, o zé povinho fica contente…

 

… E que se lixem os sacanas dos médicos, que só querem roubar o povo.

 

  • 4 comentários

    Comentar post