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Pérolas da Urgência

37ºC não é febre

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37ºC não é febre

Quando o sôtor não pode fazer mais

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- Oh sôtor diga-me lá, quanto tempo é que ainda me resta?

- Oh senhor João, infelizmente não lhe consigo responder a essa pergunta – respondi eu, com ar comprometido.

 

O que lhe estava a dizer era verdade. É muito difícil para um médico dizer a um doente quanto tempo de vida ainda lhe resta. Todos sabemos que os estudos nos dizem que para a patologia X a sobrevida média da população é Y, mas essa proporção varia tanto de doente para doente que é impossível fazermos uma estimativa correcta. Sabemos quando é que a morte é iminente, até porque existem sinais clínicos que nos alertam para isso, mas sempre me fez confusão aquela ideia do médico no consultório a dizer ao doente “Você tem três meses de vida”. Como se ao fim de três meses o corpo se desligasse automaticamente. Como se infelizmente muitos doentes a quem nós demos três meses de vida não partissem antes disso.

 

Outra coisa que me irrita profundamente é a frase “Não há mais nada a fazer”. Daí a escolha do título deste artigo. Como assim não há mais nada a fazer? Só porque o doente tem uma doença incurável ou em estadio avançado não há mais nada a fazer? Permitam-me que discorde. Ainda há muito a fazer. Há conforto para dar, há sofrimento para aliviar, há uma família à volta do doente que precisa de ser apoiada! Todos nós como médicos, quer nos dediquemos à área de cuidados paliativos ou não, nos deparamos regularmente com pessoas à beira da morte. Seja o homem de 58 anos com uma neoplasia do pâncreas em estadio IV, seja a velhinha de 92 anos com insuficiência cardíaca. E em qualquer uma destas situações há imensa coisa que podemos fazer antes de o doente partir. Aliviar sintomas, por exemplo. Gerir as expectativas do doente e família em relação à sua doença. Tratar algumas intercorrências. Dizer que não há mais nada a fazer é das frases menos médicas que podem ser ditas.

 

Até mesmo depois da morte há coisas para fazer. O doente pode ter partido, mas deixou para trás uma família que gostava dele. Uma família que agora mais que nunca precisa de apoio. Uma família que tinha expectativas e esperanças, por muito que tenha sido realista a encarar a doença. Uma família que muitas vezes projecta essas mesmas expectativas e esperanças nos profissionais de saúde que cuidaram do seu ente querido. É importante estarmos lá para essas famílias. Às vezes reagem bem, outras vezes reagem muito mal e isso custa, mas faz parte do trabalho.

 

- Oh sôtor, prometa-me só uma coisa.

- O quê, senhor João?

- Que morro sem sofrer.

 

E assim foi. Cuidámos do senhor João durante cerca de três semanas. Fizemos o que podíamos para aliviar ao máximo o sofrimento que a doença lhe causava. E no dia a seguir a ter chamado o netinho ao Hospital para passar um bocadinho com ele, o senhor João faleceu. Foi difícil transmitir a notícia à família. Não por não estarem à espera mas porque todos os dias quando o vinham ver notávamos um pingo de esperança nos seus olhos, como se miraculosamente o doente pudesse ser salvo daquilo que parecia ir ser o destino certo. A esperança tem destas coisas. Permite-nos aguentar o barco no meio da tempestade mas quando naufragamos, naufragamos à séria.

 

Duas semanas depois, vésperas de Natal, recebemos um presente no Serviço. Uma caixa de bombons. Lá dentro vinha um postal que dizia:

 

“Agradecemos do fundo do coração a forma gentil e cuidadosa como trataram do nosso familiar. Fez toda a diferença nesta fase difícil, para ele e para nós. Um bem-haja e feliz Natal.”

 

A sério, os bombons eram deliciosos. Mas ler aquelas palavras foi sem dúvida a melhor prenda de Natal que podia ter dito. Às vezes sabe bem fazer Medicina.

 

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